- Luiz Pierotti
Álvares de Azevedo: Poeta dos Opostos (Análise)

Se pensarmos em um autor sem meios termos, com certeza este seria Álvares de Azevedo. Possuidor de obras tão marcantes como Macário, Noite na Taverna e Lira dos Vinte anos, o jovem poeta paulistano parece projetar uma imagem de desmesura poética fantástica, quer por culpa do próprio autor, quer por culpa da crítica ou pelas expectativas de nosso próprio imaginário.
Seguindo a linha dos extremos, é difícil encontrarmos um leitor que ature Álvares de Azevedo, alguns o amam, outros não o suportam, e pela soma desses fatores tão opostos, podemos sentir a força de sua obra. E não é só no âmbito das críticas que se destaca essa bipolaridade (se é que podemos chamá-la assim), na verdade o mais importante, ao menos para estas próximas linhas que se seguem (afinal, este é o foco do trabalho que temos em mão), é como se dá os opostos inseridos dentro da obra de Álvares de Azevedo. Opostos estes chamados "binomias".
Para a exposição destas binomias, usarei o poema A Lagartixa, do Livro "A Lira dos Vinte Anos", poema este presente na segunda das três partes das quais é composto o livro. Porém, antes de iniciarmos uma contextualização maior do assunto, gostaria de salientar, e desta forma comprovar, o objeto de estudo que pretendo expor com esta análise, me utilizando das palavras do próprio autor em seu prefácio:
"A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces."
Devemos, primeiro, compreender a obra de Álvares de Azevedo. A totalidade de seu trabalho (tanto poemas quanto prosas) representa uma diversidade de "facetas" do autor. O fantástico e o gótico, que são tão abundantes em suas prosas, o inocente (mesmo que propositalmente inocente) e íntimo, da primeira e segunda parte da Lira dos Vinte anos, e o que nos interessa mais no presente momento: “a alegria saudável, graciosa x a dosagem exata de humor", de que é formada a segunda parte da Lira.
A importância deste humor em uma obra romântica é muito bem grifada por Marlene de Castro Correia que no livro Poesia Sempre diz: "[...] o humor confere à poesia de Álvares de Azevedo uma feição ímpar no Romantismo brasileiro e dele advém parte de seu poder de sedução sobre a sensualidade moderna". Antonio Candido vai mais fundo em seu livro "Formação da Literatura Brasileira" e diz: "As seis poesias da série Spleen e Charutos formam um conjunto excepcional [...] podendo algumas ser consideradas pequenas obras primas no gênero, como "Solidão" e " A Lagartixa".
Nos utilizando um pouco mais das palavras de Marlene de Castro, podemos entender a formação deste gênero humorístico da poesia de Álvares de Azevedo na utilização do prosaico, do espaço comum ao homem, do cotidiano, etc. É uma poesia simples, do pequeno, e que por este motivo cria uma atmosfera excepcional em torno de si e uma compreensão muito maior por parte de quem a lê. Mas não podemos dizer que esta obra era desprovida de intenções maiores ou "solta" em meio ao universo literário, muito pelo contrário, o autor mantém sempre uma conversação direta com tópos românticos.
Portanto, com esta breve contextualização da obra, acredito ser possível analisarmos diretamente o poema escolhido:
A Lagartixa
A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.
Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.
Posso agora viver para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis dos teus amores.
Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha;
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.
Logo ao iniciarmos a leitura do poema somos tomados por certo desconcerto causado por termos tão estranhos à poesia romântica, como por exemplo a Lagartixa. É deste estranhamento que, ao continuarmos lendo, percebemos uma crescente entonação de humor gracioso, mesclado a alguns temas comuns dos autores da época.
Com uma análise bem superficial, na primeira estrofe identificamos um tópos romântico muito utilizado: a exaltação da mulher amada. Mas todo o crescimento emocional proposto neste tema é rompido no último verso quando o poeta diz "Tu és o sol eu sou a lagartixa". A comparação traçada é cômica quando se constrói por meios tão provincianos. O amor não eleva o homem, ele lhe faz aparentar a condição de um pequeno réptil.
A partir daí nos parece que o poeta começa a desfazer o objeto humorístico quando constrói outras temáticas românticas, como o culto ao ócio em : "Amo-te como o vinho e como o sono,/Tu és meu copo e amoroso leito..." e "Travesseiro não há como teu peito". Ou no engrandecimento das características da mulher: "Nas rosas mais gentis dos teus amores". Porém, a última estrofe desconstrói novamente o objeto romantico: "Vivo ao sol dos seus olhos namorados;/como ao sol de verão a lagartixa."
Uma leitura mais atenta possibilita traçar uma grande variedade de binomias nestas quatro estrofes, desta forma trabalhando a aproximação de opostos.
A primeira grande binomia moldada por Álvares de Azevedo é a aproximação Homem x Animal, o poeta que ama e a lagartixa que ao sol faz verão, e desta binomia forma-se outra que seria o "calor do sentimento amoroso" x "o sangue frio do réptil", pois a escolha do objeto de comparação é bem específico para o autor.
Seguindo esta linha, há também a oposição da "grandiosidade do amor romântico" X "a mesquinhez da lagartixa". Podemos até traçar mais uma oposição entre o próprio sol e sua importância para ambas as criaturas: para a lagartixa seria um provedor biologicamente necessário no que diz respeito à obtenção de energia, já para o poeta vem carregado de preguiça,como se o calor deste seu amor lhe tirasse a energia e o encharcasse de sono e preguiça.
Mas não é apenas nos termos que se constrói a binomia, a produção da temática poética, por si só, aproxima opostos. A mescla de objetos comuns ao romantismo tradicional e da atmosfera graciosa e humorada da poesia incube-se do efeito.
Portanto, temos um grande exemplo deste fenômeno da poesia de Álvares de Azevedo no poema A Lagartixa, onde o leitor se depara com extremos opostos tão figurativos quanto morais, tão provincianos quanto altamente críticos e. desta forma, o poeta cria, como diria Antonio Candido, "pequenas obras primas" que dialogam com todo um cenário literário. Nada menos esperado vindo de um poeta sem meios termos.