- Luiz Pierotti
Cinetáfio

Ela observa o rosto magro e salpicado de suor frio. Seus tremores haviam passado e agora só restava o corpo cansado, de respiração profunda. O sono como a fuga da dor.
Ela o observa. Havia passado a noite toda ao seu lado. Panos na testa, cobertores, água. Nunca quis ser médica, muito menos enfermeira, moribundos a irritavam, mas nesse caso era diferente.
Foram seis anos de um relacionamento medíocre dentro do esperado, e fabuloso dentro das possibilidades. Dessa forma, pela união matrimonial e aliciados pelo pensamento cristão, esses pequenos sacrifícios se faziam necessários. Foi uma noite comprida, mas finalmente os arrepios cessaram assim como os gemidos e as alucinações febris.
Passa a mão, devagar, por seus cabelos ensopados. Rosto frio e calmo, talvez bem mais calmo do que deveria ser, talvez uma cura súbita. Não fazia diferença, nunca quis mesmo ser médica. Pouco lhe importava técnicas de reanimação, muito menos o conhecimento cogente para empregar diagnósticos. Este era seu marido, e ela havia feito o possível.
Lembrou-se de uma tarde em que o homem, que agora morria em sua frente, disse que a vida era perspectiva. Nunca foi um evento singular, mas uma representação instituída por aqueles inseridos nela.
“Só somos vivos, na plenitude esperada, quando por meio de condições externas nos lembramos disso. Não é possível sentir-se vivo enquanto confortável no sofá. Medo, dor, tristeza... Isso realça nossa fragilidade e nos faz lembrar da vida. No mais, somos só efeito.”
Sophia o observa. Havia passado a noite toda ao lado de um homem vivo, mas nesse momento, o peito que doía mais era o dela. Sentiu sua própria fragilidade. Levantou-se e foi à sala onde pôde, finalmente, deitar-se no sofá e sentir-se pesar. Estava viva e devia deixar seu morto em paz.

O conto em questão pertence ao livro "Contos do Rio Estige" de autoria de Luiz Pierotti e publicado pela Editora Patuá. Você pode encontrá-lo no link.